A ONU E O SEU CONCEITO REVOLUCIONÁRIO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca (*)
1. MOTIVOS
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a Organização das Nações Unidas vem aperfeiçoando, por meio de seus tratados internacionais, o processo de edificação dos Direitos Humanos, o qual se universalizou a partir da primeira metade do Século XX, para fazer frente aos abusos havidos no período das Guerras Mundiais e aos que foram cometidos posteriormente até os nossos dias. Não é por outra razão que, a partir do enunciado constante do art. 1º daquela Declaração Universal, no sentido de que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. (...)”, a própria Organização Internacional editou as sete primeiras convenções internacionais, agora complementadas pela supra-mencionada.
São, assim, as seguintes: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias.
Como se vê, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência insere-se num processo de construção do conjunto dos direitos humanos, os quais foram sistematizados a partir do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966, os quais elencaram os direitos individuais básicos e os direitos sociais. Posteriormente, esta construção voltou-se a grupos vulneráveis, a saber: minorias raciais, mulheres, pessoas submetidas à tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, crianças, migrantes e, finalmente, pessoas com deficiência. Observa-se, destarte, conforme expresso no próprio preâmbulo da última Convenção Internacional que a atenção aos grupos vulneráveis visa dar eficácia aos direitos humanos de forma a fazê-los unos, indivisíveis e interdependentes, de vez que as liberdades individuais e os direitos sociais fazem parte de uma sistematização monolítica e reciprocamente alimentada.
A dedicação conferida aos grupos vulneráveis faz-se necessária para que aqueles direitos universais de natureza individual e social encontrem instrumentos jurídicos hábeis a torná-los eficazes. Logo, cada convenção internacional, assim como a presente, implica uma retomada de todas aquelas liberdades individuais e daqueles direitos sociais por intermédio de princípios jurídicos especificamente aplicáveis, a cada grupo vulnerável. Defender as minorias, significa, portanto, preservar os Direitos Humanos de todos, para que a maioria democrática não se faça opressiva e possa legitimar-se pela incorporação das demandas de cada grupo humano, preservando-se a idéia de igualdade real a ser assegurada pelo Direito.
Para tanto, a presente Convenção contém 30 artigos que contemplam direitos humanos universais, devidamente instrumentalizados para atender a necessidade do seguimento das pessoas com deficiência, sem os quais os direitos em questão não se lhes beneficiam. Trata-se de assegurar-lhes, assim, direitos humanos básicos, como o de livre expressão, de ir e vir, de acessibilidade, de participação política, de respeito a sua intimidade e dignidade pessoal, bem como aqueles de índole social, como direito à saúde, ao trabalho e ao emprego, à educação, à cultura, ao lazer, aos esportes, à moradia, etc.
Além do mais, o próprio conceito de pessoa com deficiência incorporado pela Convenção, a partir da participação direta de pessoas com deficiência levadas por Organizações Não Governamentais de todo o mundo , carrega forte relevância jurídica porque incorpora na tipificação das deficiências, além dos aspectos físicos, sensoriais, intelectuais e mentais, a conjuntura social e cultural em que o cidadão com deficiência está inserido, vendo nestas o principal fator de cerceamento dos direitos humanos que lhe são inerentes.
O Brasil participou de todo o processo de elaboração da Convenção, que se deu em tempo recorde – cerca de 5 anos -, e já a subscreveu, o que reforça a imperiosa necessidade de ratificação do Tratado, mas ela deve se dar sob a égide do parágrafo 3º, do art. 5º, da Constituição Federal. É que, embora nosso País apresente amplo rol de Leis e Decretos Regulamentares em favor das pessoas com deficiência, estes não gozam de eficácia plena, seja porque muitos direitos encontram-se em Decretos sem força de cogência, em razão da inexistência de normas que imponham sanções aos transgressores, seja porque a grande proliferação de Leis e Decretos se dá de forma desordenada e assistemática, dificultando, ao aplicador, a apreensão e correta aplicação dos dispositivos.
A necessidade de ver a Convenção aprovada com força de norma constitucional, porém, se faz mais ainda imperiosa, uma vez que as pessoas com deficiência representam um grupo composto por vinte e quatro milhões e quinhentas mil pessoas, segundo o último censo ocorrido em 2000, grupo este que é transversal às questões sociais, de gênero, de raça ou qualquer outro fator de discrímen, que todavia se agrava em razão da deficiência e do longo abismo cultural que vem isolando as pessoas com deficiência há séculos. Assinale-se, que em torno das pessoas com deficiência, há os seus familiares e cônjuges, os quais, por vezes, suportam ônus que não deveriam, justamente em razão da precariedade de acesso aos direitos que caracteriza o grupo em comento.
Pode-se afirmar, assim, que a Convenção atingirá, diretamente, cerca de cem milhões de pessoas no Brasil e, indiretamente, toda a população, considerando-se a notória elevação da expectativa de vida e as questões inerentes aos idosos, que guardam estreita relação com os direitos nela assegurados.
Nesse estudo, analisar-se-ão as principais inovações da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e os efeitos que poderão advir da ratificação pelo Brasil.
2. BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
2. 1. PREÂMBULO
O preâmbulo do referido Instrumento Internacional espelha em 25 itens as preocupações levantadas linhas acima, acerca da inteireza, inter-dependência e universalidade dos direitos humanos e do acesso a estes em relação ao grupo referido. Alguns tópicos, porém, merecem destaque porque demonstram a fundamentação político-jurídica a lastrear as normas que se sucedem. São os seguintes:
Nos itens iniciais realça-se a idéia de preservação do conjunto dos direitos humanos e de sua interdependência. Na letra “e”, contudo, a Organização Internacional enfoca a justificativa do conceito de pessoa com deficiência contido no art. 1 das normas, reconhecendo que se trata de um conceito em evolução, o qual deve conter os aspectos clínicos e funcionais das deficiências e que estas resultam da interação entre aqueles e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem a plena e efetiva participação das pessoas com deficiência na sociedade, em igualdade de oportunidades com as demais.
No item “k”, os representantes dos Estados membros reconhecem a notória ineficácia dos institutos jurídicos e das políticas públicas universais no que concerne à garantia de fruição dos direitos humanos pelos cidadãos com deficiência. Por outro lado, reafirmam no item “m” que as pessoas com deficiência podem contribuir socialmente de forma decisiva para o bem-estar comum e à diversidade de suas comunidades, e que a promoção de seus direitos humanos trará significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico das sociedades, bem como na erradicação da pobreza, que, aliás, caracteriza profundamente este grupo de pessoas, conforme também explicitado no item “t” do preâmbulo.
Outra diretriz relevante da Convenção em apreço é, de acordo com o que se lê no item “w” do preâmbulo, a idéia de promoção da pessoa com deficiência a partir de suas capacidades, como sujeito de direitos, deveres e obrigações, qual todos os cidadãos, fazendo jus, entretanto, a medidas que lhe possibilitem equiparar-se aos outros. No item “x”, a justificativa preambular volta-se ao reconhecimento dos direitos inerentes à constituição e à proteção da família da pessoa com deficiência. Finalmente, no item “y”, o preâmbulo se encerra com a seguinte diretriz: “Convencidos de que uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência prestará uma significativa contribuição para corrigir as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento”.
2.2. MONITORAMENTO
Nos artigos 31 a 50, a Convenção estabelece os mecanismos administrativos para sua implantação, acompanhamento e monitoramento dos resultados pelos Estados Membros, que instituíram mecanismos recíprocos e coletivos para tanto: Artigo 31 - Estatísticas e coleta de dados; Artigo 32 - Cooperação internacional; Artigo 33 - Implementação e monitoramento nacionais; Artigo 34 - Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; Artigo 35 - Relatórios dos Estados Partes; Artigo 36 - Consideração dos relatórios; Artigo 37 - Cooperação entre os Estados Partes e o Comitê; Artigo 38 - Relações do Comitê com outros órgãos; Artigo 39 - Relatório do Comitê; Artigo 40 - Conferência dos Estados Partes; Artigo 41 – Depositário; Artigo 42 – Assinatura; Artigo 43 - Consentimento em comprometer-se; Artigo 44 - Organizações de integração regional; Artigo 45 - Entrada em vigor; Artigo 46 – Restrições; Artigo 47 – Emendas; Artigo 48 – Denúncia; Artigo 49 - Formatos acessíveis; Artigo 50 - Textos autênticos.
Depura-se da leitura dos dispositivos em questão que esta Convenção inovou em muitos aspectos, ao estabelecer a criação de um comitê de monitoramento que se comporá, inicialmente de 12 peritos indicados pela Organização quando da entrada em vigência do Tratado, o que ocorrerá a partir do depósito da 20ª ratificação empreendida entre os Estados Partes. Ao se darem 60 ratificações, o comitê será acrescido de seis membros, de ilibada reputação e notório conhecimento sobre a matéria, totalizando 18, cujas atribuições são as de receber denúncia conforme protocolo de adesão voluntária a seguir comentado e dar andamento àquelas para a verificação da eficácia das normas convencionais nos Estados Partes.
Houve, após intensa negociação, a formulação de um protocolo facultativo à dita Convenção. Decidiu-se adotá-lo porque o protocolo em tela também é um avanço sobre os métodos de monitoramento tradicionalmente operacionalizados pela ONU, conforme se verificará, mas a sua implementação foi, por isso mesmo, objeto de dúvida por parte de alguns diplomatas. Sendo assim, as medidas nele contidas foram extraídas do corpo da Convenção, cuja aprovação se deu por consenso e fixou-se a possibilidade de que os mecanismos fiscalizatórios do protocolo fossem incorporados apenas por aqueles que não fizessem restrições.
O Brasil subscreveu o protocolo que reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para receber e considerar comunicações submetidas por indivíduos ou grupos de pessoas sujeitos à sua jurisdição, em caso de transgressões das normas convencionais pelos Estados-Partes. O referido protocolo desenvolve, também os mecanismos de investigação das denúncias, prevendo inclusive, caso se justifique e o Estado Parte consinta, a possibilidade de visita ao território investigado. Apurada a denúncia, o Comitê deverá comunicar as conclusões ao Estado Parte investigado, acompanhadas de comentários e recomendações.
2. 3. NORMAS
O artigo 1 que se refere ao Propósito da Convenção está assim redigido: “O propósito da presente Convenção é o de promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade”. Dessa forma, o artigo 1 sintetiza a preocupação de se garantir a eficácia dos direitos humanos em todos os seus matizes para que as pessoas com deficiência desenvolvam-se plenamente como cidadãos, superando a notória exclusão decorrente de aspectos culturais, tecnológicos e sociais que as tolhem.
Isso se corrobora justamente no conceito de pessoa com deficiência que também se inseriu no dispositivo em questão, assim delineado: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.” Esse conceito, conforme já se disse, está motivado pelo que se fixara no item “e” do preâmbulo, que reconhece: “...que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.
Advirta-se, ainda, que o artigo 3 a seguir comentado, entre os princípios que enumera, veicula a idéia de que a deficiência deve ser tida como algo inerente à diversidade humana, como notoriamente se conhece, traduz-se nas peculiaridades de raça, gênero, orientação sexual, religiosa, política, ideológica, na condição familiar, étnica, de origem, etc.. Defende-se, destarte, a idéia de que os “impedimentos” pessoais de caráter físico, mental, intelectual ou sensorial revelam-se como atributos pessoais, que, todavia, são fatores de restrição de acesso aos direitos, não pelos efeitos que tais impedimentos produzem em si mesmos mas, sobretudo, em conseqüência das barreiras sociais e atitudinais.
O conceito é revolucionário, porque defendido pelos oitocentos representantes das Organizações não Governamentais presentes nos debates, os quais visavam a superação da conceituação clínica das deficiências (as legislações anteriores limitam-se a apontar a deficiência como uma incapacidade física, mental ou sensorial). A intenção acatada pelo corpo diplomático dos Estados Membros, após longas discussões consiste no deslocamento do conceito para a combinação entre esses elementos médicos com os fatores sociais, cujo efeito é determinante para o exercício dos direitos pelos cidadãos com deficiência. Evidencia-se, então, a percepção de que a deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimentos têm assegurada ou não a sua cidadania.
Assim, por exemplo, a eliminação de barreiras arquitetônicas assegura o direito de ir e vir para as pessoas com deficiências físicas; a criação de meios alternativos de comunicação garante o direito de livre expressão para os surdos e cegos; os métodos de educação especial viabilizam o acesso ao conhecimento para qualquer pessoa com deficiência, mental ou sensorial. Quando essas medidas não são adotadas, excluem-se as pessoas com tais impedimentos, pondo-se a nu a incapacidade social de criar caminhos de acesso à realização plena dos direitos humanos. Quer-se, assim, transpor a idéia de que a responsabilidade pela exclusão da pessoa com deficiência se deve a ela ou sua família, para que se compreenda que a sociedade também deve responsabilizar-se por oferecer instrumentos institucionais e tecnológicos para se abrirem as perspectivas de acolhimento e emancipação de todos.
O art. 2 define idéias centrais para a compreensão do instrumento, nos seguintes termos: “"Comunicação" abrange as línguas, a visualização de textos, o braile, a comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos de multimídia acessível, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizada e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, inclusive a tecnologia da informação e comunicação; “Língua” abrange as línguas faladas e de sinais e outras formas de comunicação não-falada; "Discriminação por motivo de deficiência" significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável; "Ajustamento razoável" significa a modificação necessária e adequada e os ajustes que não acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam desfrutar ou exercitar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; “Desenho universal” significa o projeto de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem que seja necessário um projeto especializado ou ajustamento. O “desenho universal” não deverá excluir as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.””
Emerge da leitura que as formas de linguagem e comunicação típicas de grupos de pessoas com deficiências sensoriais que afetem a comunicação escrita ou oral, antes restritas aos guetos de linguagem a eles inerentes e desconhecida da maior parte da população, como ocorre com o braile e a LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais, passam agora a ser reconhecidos como instrumentos sociais a serem apropriados por todos. Também que o ajustamento razoável e o desenho universal, cultivam a necessidade de que os equipamentos e produtos arquitetônicos e industriais devem atender todos, ou seja, o processo produtivo deve voltar-se à criação de soluções garantidoras da utilização universal dos mesmos. A discriminação também é definida como qualquer ato que tenha por finalidade ou resultado a restrição de direitos em razão da deficiência, abrangendo, portanto, a intenção discriminatória e a discriminação objetivamente verificada por resultados, inclusive estatísticos, ou seja, a discriminação subjetiva ou objetiva.
O art. 3 elenca os princípios gerais como: autonomia, independência, liberdade de fazer as próprias escolhas; da dignidade inerente à pessoa com deficiência; da não discriminação; da participação plena; da deficiência como algo inerente à diversidade humana; da igualdade de oportunidades e da acessibilidade; da inclusão; do respeito à igualdade entre homens e mulheres e do respeito às capacidades das crianças com deficiência, como pessoas em desenvolvimento.
Esses princípios são normas, não meros recursos de interpretação da Convenção, direcionam o aplicador do Tratado no sentido de promover a dignidade inerente da pessoa com deficiência física, mental ou sensorial, dignidade essa que a coloca como sujeito participativo, autônomo e liberto das amarras da superproteção caridosa.
O art. 4 estabelece as obrigações dos Estados Partes para a implementação e universalização do Tratado em seus territórios, no sentido de que desestimulem práticas e costumes discriminatórios contra pessoas com deficiência, atualizem as legislações, estabeleçam políticas públicas para a divulgação das capacidades das pessoas com deficiência e de suas necessidades, formem profissionais habilitados para a educação, saúde, reabilitação e habilitação das pessoas com deficiência para o convívio social, promovam o desenvolvimento de pesquisas para o avanço da tecnologia para tais necessidades, fomentem políticas de alargamento dos direitos econômicos, sociais e culturais, incluam pessoas com deficiências e suas instituições na tomada de decisões das políticas públicas a elas dirigidas. No item “ 4” , institui-se, ainda que: “Nenhum dispositivo da presente Convenção deverá afetar quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, os quais possam estar contidos na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não deverá haver nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.”
O art. 5 volta a tratar da não discriminação nos moldes dos artigos 2 e 3, mas estabelece ainda que as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não deverão ser consideradas discriminatórias. Está assim a estimular as políticas de ação afirmativa como cotas de empregos, ou oportunidades na educação.
Os artigos 6 e 7, por sua vez, reiteram os tratados anteriores referentes a mulheres e crianças, adequando-os, todavia, às demandas daquelas com deficiência.
O art. 8 trata da necessidade de conscientização quanto às peculiaridades das pessoas com deficiência no sentido de desmistificá-las e torná-las conhecidas pelas famílias e pela sociedade.
O art. 9 disciplina a acessibilidade, abordando aspectos como barreiras arquitetônicas internas e externas, comunicação, telecomunicações, linguagem, acesso à informação, transporte, moradia, etc.
Os art. 10 e 11 dispõem respectivamente, do direito à vida e à proteção em caso de calamidades e guerras. Isso se deve ao fato de que em alguns países ainda há hoje legislações que autorizam o chamado “aborto eugênico” quando se constata o risco de nascimento de criança com deficiência grave, ou em que as primeiras vítimas, em caso de calamidade pública, como já se constatou, são as pessoas com deficiência que adquiriram pela norma, direito a tratamento prioritário. Na Alemanha nazista, as vítimas de guerra e os próprios alemães com deficiência foram submetidos aos campos de concentração e às câmaras de gás. Preocupavam-se os promotores do art. 11 com uma medida que venha a banir esta mancha da memória humana.
O art. 12 discorre acerca do reconhecimento igual da capacidade jurídica para a fruição dos direitos, bem como para o exercício dos atos jurídicos por todas as pessoas com deficiência, inclusive mental ou sensorial, devendo ser respeitada a sua capacidade de decisão, garantindo-se, entretanto, proteção por meio da tutela ou da curatela em caráter suplementar, tal como ocorre com a interdição parcial prevista no Código Civil Brasileiro.
O art. 13, ao seu turno, garante o acesso à Justiça às pessoas com deficiência, que deve ocorrer em igualdade de condições com as demais, fazendo com que o Poder Judiciário se torne acessível tanto no que diz respeito à remoção de barreiras físicas, quanto à criação de mecanismos processuais que assegurem a plena captação da vontade da pessoa com deficiência como parte ou sujeito do processo, ao depor ou se manifestar de qualquer outra forma. Assinale-se que o ato de dizer o direito está na própria essência da jurisdição, cuja origem etimológica é exatamente a jurisdictio – ato de dizer o direito. Logo, essa manifestação jurisdicional deve ser acessível a todos, inclusive em língua de sinais, braile ou sistema de áudio.
Os artigos 14 a 18 cuidam da liberdade e segurança da pessoa; prevenção contra à tortura, a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; prevenção contra a exploração, a violência e o abuso; proteção da integridade da pessoa e liberdade de movimentação e nacionalidade.
Realçam-se, aqui, os critérios universais de proteção da pessoa contra a violência, inclusive a própria violência institucional. Cuidam-se, assim, das condições concernentes a tratamentos médicos e hospitalares, que devem se pautar pelo direito do paciente de ser informado sobre suas condições de saúde e tratamentos possíveis, para que possa autorizá-los. Versam também os dispositivos em comento, sobre o direito ao devido processo em casos de questões penais ou prisionais. Outro aspecto a ser relembrado refere-se aos direitos de migração, nacionalidade, segurança pública.
Os arts. 19 a 21 pugnam pela vida independente, pela inclusão na comunidade; pela mobilidade social, pela liberdade de expressão e de opinião e pelo acesso à informação. O conceito de vida independente implica a plena inserção da pessoa com deficiência na comunidade e no asseguramento dos meios para tanto. São instrumentos ou mesmo pessoas que possam apoiar-lhes de forma a viabilizar o exercício pleno dessa participação. Visa-se, com isso, romper os muros de isolamento institucional. A mobilidade social, a seu turno, é o segundo passo do processo de inserção, com vistas a garantirem-se canais de ascensão social da pessoa com deficiência. A liberdade de expressão, de opinião e de acesso à informação se viabilizará pela adoção de tecnologias que possibilitem a difusão de linguagens especiais, como aquelas utilizadas por cegos e surdos; a instrumentalização desses objetivos está hoje assegurada pela aplicação da informática e de procedimentos para a inclusão de intérpretes de línguas e sinais e divulgação de livros e textos em braile ou outro formato acessível como o áudio, além de sistemas telefônicos adaptados aos surdos, etc..
O art. 22 desenvolve o direito à privacidade da pessoa com deficiência em igualdade com as demais pessoas, sublinhando a inviolabilidade de seu domicílio e da sua correspondência, sobretudo preservando-se os seus dados pessoais, mesmo no que concerne à estruturação de políticas públicas. O próprio cadastramento de pessoas com deficiência, para o dimensionamento dessas políticas, deve resguardar-lhes a privacidade.
O art. 23 versa sobre o direito de constituir, manter e planejar a família por pessoas com deficiência; preserva, também, o direito à filiação natural ou adotiva, bem como os cuidados inerentes à guarda aos pais com deficiência. Impõe, outrossim, o direito de crianças com deficiência serem devidamente atendidas pelos pais ou familiares, centralizando-se a proteção convencional na mantença do núcleo familiar primário, mesmo por meio de políticas públicas de apoio.
O art. 24 é um verdadeiro tratado jurídico e político em prol da educação inclusiva, idéia fulcral dos debates que pautaram o texto convencionado na Organização Internacional. Em 5 itens e 11 sub-itens defende-se o primado de que crianças, jovens e adultos com deficiência devem estudar em escolas comuns, regulares, nas modalidades de: ensino superior, treinamento profissional, educação de jovens e adultos e aprendizado continuado, sem discriminação e em igualdade de condições com as demais pessoas. Devem ser empregados métodos especiais, inclusive quanto as linguagens adequadas, como o braile e língua de sinais ou, sistemas tecnológicos que supram as deficiências físicas e sensoriais, além de métodos pedagógicos para pessoas com deficiência mental. Com isso, visa-se assegurar-lhes igualdade de oportunidades educacionais inclusivas em todos os níveis, com objetivos específicos para o desenvolvimento do censo de cidadania, pertencimento social e da personalidade da pessoa com deficiência.
Para tanto, o item 2 determina que: “a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório, sob a alegação de deficiência; b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem; c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas; d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e) Efetivas medidas individualizadas de apoio sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, compatível com a meta de inclusão plena.”
Esse dispositivo constitui a base para o sucesso das políticas públicas, uma vez que a escola é o primeiro locus de participação política e social fora do âmbito familiar. Ademais, a convivência entre jovens e adultos com e sem deficiência desde a infância rompe tabus, quebra correntes institucionais e, naturalmente, propicia o aprendizado do respeito à diversidade humana. É possível afirmar-se mesmo, que a escola inclusiva universalizada fará dispensável, ao longo dos anos, qualquer outra política de ação afirmativa. Sem ela, ao contrário, os esforços de inserção da pessoa com deficiência em sociedade serão esvaziados.
As escolas especiais desenvolveram em décadas no Brasil, um trabalho muito elogiável, até porque supriram o vazio estatal. Não se quer, com isso, eliminá-las ou não se reconhecer a sua importância histórica. É mister, porém, que o conhecimento por elas acumulado seja compartilhado por toda a sociedade, iniciando-se uma gestão pública e privada da questão, com vistas a romper o isolamento que tem caracterizado a educação de crianças, jovens e adultos com deficiência no Brasil, isolamento esse que se irradia para todos os outros setores da vida social. A Convenção é categórica nesse sentido.
O art. 25 dispõe sobre a saúde, estimulando a universalização da saúde pública e privada, tanto no meio urbano como no rural, com prioridade para o atendimento público universal. Busca, com base no princípio do livre consentimento da pessoa com deficiência, o atendimento das suas necessidades específicas, inclusive para a prevenção ou agravamento das deficiências. Proíbe a discriminação para admissão de pessoas com deficiência em programas públicos ou privados de saúde ou seguro de vida e exorta ao desenvolvimento de pesquisas para a garantia da qualidade de vida das pessoas com deficiência.
O artigo 26 regulamenta o direito à habilitação e à reabilitação particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que estes serviços e programas: “a)Comecem o mais cedo possível e sejam baseados numa avaliação multidisciplinar das necessidades e pontos fortes de cada pessoa; e b) Apóiem a participação e a inclusão na comunidade e em todos os aspectos da sociedade, sejam oferecidos voluntariamente e estejam disponíveis às pessoas com deficiência o mais próximo possível de suas comunidades, inclusive na zona rural.” Devem também os signatários desenvolver a formação de profissionais para cada área de habilitação e reabilitação, utilizando-se de tecnologias assistivas adequadas.
Habilitação é o processo de preparação de uma pessoa com deficiência, que inclui educação, fisioterapia, treinamento profissional e técnico para utilização de próteses, órteses, linguagens especiais, etc, de modo a lhe garantir o ingresso na vida social, porque se trata de pessoa que nasceu com deficiência ou se tornou deficiente na primeira fase da infância. A reabilitação, ao seu turno, dar-se-á nos mesmos moldes, mas será aplicada às pessoas que se tornem deficientes ao longo da vida e que necessitem voltar ao convívio social e profissional. Este, aliás, é o direito precípuo dos trabalhadores que sofrem acidente do trabalho ou doenças incapacitantes. Regra-se a obrigação social fundamental para que se suplante o paradigma do isolamento caritativo, assistencialista.
O art. 27 sintetiza a Convenção 159/83 da OIT, que se refere ao direito ao trabalho em igualdade de oportunidade com as demais pessoas. Trata-se da proibição de discriminação da pessoa com deficiência no trabalho, de seu recrutamento e acesso ao emprego, da manutenção do posto de trabalho, da ascensão profissional e das condições seguras e salubres de trabalho. Normatiza, ademais, o trabalho por conta própria, o cooperativismo e o acesso ao serviço público à pessoa com deficiência. Assegura, para tanto, qualificação profissional, direitos trabalhistas e previdenciários, incentivos fiscais e políticas de cotas nas empresas, apoio à livre iniciativa para pessoas com deficiência empreendedoras, além do direito à sindicalização. Impõe aos Estados a permanente qualificação de educadores com vistas à formação, à habilitação e à reabilitação de pessoas com deficiência para o mundo do trabalho. Exorta à criação de políticas públicas para a inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Finalmente, conclama à liberdade de trabalho, vedando trabalho escravo ou servil, bem como forçado ou compulsório e ao combate à exploração de pessoas com deficiência.
O Brasil conta com ampla legislação de garantia de acesso de pessoas com deficiência ao trabalho, inclusive por meio de cotas obrigatórias em empresas com mais de cem empregados, em percentual de 2% a 5%, dependendo do número total de colaboradores - Lei 8.213, art. 93 e Decreto 3.298/99. Também a Constituição assegura no art. 37, VIII, a reserva de cargos e empregos públicos por meio de concursos. Ocorre, porém, que embora reconheçam-se amplos avanços na colocação de pessoas com deficiência nas empresas e mesmo na esfera pública, desde 2000, época em que se começaram a implementar as normas em questão, muito há que se fazer com vistas à universalização desses direitos, já que há um déficit crônico de formação educacional e profissional das pessoas com deficiência em nosso País. Há que se superar, sobretudo, a política pública assistencialista que vem a desestimular o ingresso do cidadão com deficiência no mundo competitivo, uma vez que recebe da assistência social o benefício de prestação continuada acima comentado, bastando que alegue incapacidade e renda familiar de ¼ do salário mínimo.
A percepção dessa renda acaba, por vezes, sendo a fonte de sustento de muitas famílias apesar do seu baixo valor e, por isso mesmo, os filhos são desestimulados a estudar, trabalhar ou até a sair de casa. De acordo com a norma convencional em questão, essa política assistencialista deveria ser casada a outras de acesso à educação e ao trabalho.
Os artigos 28 e 30 enumeram os direitos ao padrão de vida e à proteção social adequados, à participação na vida cultural e na recreação, no lazer e no esporte. Pretende-se aqui assegurar-se o direito à condição de vida digna, com o mínimo indispensável para tanto e mais, o direito de acesso ao lazer, à cultura, aos esportes, às artes, etc... O intuito é de tornar a pessoa com deficiência um ser humano completo e plenamente realizado em todas as instâncias para uma vida de qualidade e verdadeiramente feliz.
Finalmente, o artigo 29 evidencia o direito à participação política da pessoa com deficiência – direito de votar e ser votado - esse direito deve ser exercido em igualdade de condições com os demais cidadãos. Dessa forma, devem-se garantir “procedimentos, instalações e materiais para votação apropriados, acessíveis e de fácil compreensão e uso”. Assegura-se, ainda, o voto secreto, livre e universal, bem como o direito a se candidatarem livremente a cargo eletivo ou funções públicas. Garante-se, outrossim, a livre expressão da vontade da pessoa com deficiência como eleitor e a possibilidade de que utilizem inclusive apoios pessoais ou técnicos no exercício dessa vontade. Estimula-se a participação de pessoas com deficiência em partidos políticos e organizações não governamentais, essas de âmbito internacional, nacional, regional e local para que se façam representar coletivamente na vida pública.
3. OS POSSÍVEIS EFEITOS DA RATIFICAÇÃO PELO BRASIL
O direito brasileiro sempre discutiu os efeitos da ratificação de um tratado internacional para o ordenamento jurídico interno. A doutrina, em geral, realça a primazia das normas internacionais ratificadas sobre as leis ordinárias[1].
Tal se reforça pela própria dicção do § 2º do art. 5º da Constituição Federal que assim se lê: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. O dispositivo em testilha já outorgara status constitucional aos tratados ratificados em matéria de direitos humanos, conforme insiste a doutrina. A jurisprudência até o momento dominante na Suprema Corte[2], porém, nivela as normas ratificadas com as leis ordinárias, fato que explica a recente alteração trazida pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que acrescentou o §3º ao art. 5º da CF, nos seguintes termos: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Observa-se que a prosperar o entendimento dominante até hoje no Supremo para que um tratado ratificado equipare-se a normas constitucionais, será necessária a aprovação por quorum qualificado do pedido de ratificação pelo Executivo. Caso haja reversão da jurisprudência e prevaleça o reiterado entendimento doutrinário, a mera ratificação sem quorum qualificado já poderia outorgar às Convenções ratificadas foros de preceito supra legal. Por ora, convém defender as benesses jurídicas da ratificação da presente Convenção na forma do § 3º do art. 5º da CF. Será a primeira vez que esse procedimento se adotará no Congresso, inaugurando a tutela constitucional minudenciada de um grupo de cidadãos.
Sublinhe-se, nesse passo, que a Carta Magna contempla diversos grupos vulneráveis, ao proteger a mulher (art. 7º, XX), as crianças e adolescentes (art. 227), os idosos (art. 230), os índios (art. 231 e 232), os remanescentes das comunidades quilombolas (art. 68) e as próprias pessoas com deficiência (art. 7º, 23, 24, 31, 37, VIII, 201, 203, 207, 227, 244).
Faz-se mister a distinção histórica de se ter a presente Convenção aprovada com quorum qualificado e hierarquia constitucional. É que embora profusa a edição de leis em favor das pessoas com deficiência, os instrumentos normativos constituem-se de regras exortativas, desprovidas de sanção. Cumulam-se em quantidade sem qualquer sistematização principiológica ou técnica jurídica, como ocorreria num código ou num estatuto, o que dificulta o domínio da matéria por juízes, advogados e membros do Ministério Público. Diversas normas federais dirigem-se às administrações municipais e estaduais, como, por exemplo, as Leis 10.048/00 e 10.098/00 que disciplinam o transporte acessível e as remoções de barreiras arquitetônicas. A regulamentação pelo Decreto 5.296/04, não foi suficiente, porém, para que os municípios as cumprissem, tendo em vista as regras constitucionais que lhes garantem autonomia administrativa e legislativa.
Há que se superar, insista-se, em nosso país a prevalência do assistencialismo que pauta a matéria. A percepção do benefício assistencial desestimula a pessoa com deficiência a lançar-se à competição do mundo do trabalho bem como desonera o Estado da premência que, seria desejável, na instituição das políticas públicas amplas de saúde, educação, transporte, comunicação e remoção de barreiras atitudinais e arquitetônicas.
A assistência social não é um fim em si mesmo. Deve ser um instrumento de emancipação e, por isso, a concessão do benefício em tela deveria ser acompanhada de envolvimento do beneficiário com as demais obrigações estatais inerentes à escola, à saúde, ao trabalho etc. Parece assim, que a ratificação da Convenção sistematizará, por meio dos princípios normativos que contemplam o instrumento, a inteireza dos direitos humanos aqui expostos.
Não se pode olvidar, ainda, que a condição de deficiência tem se colocado como um fator de agravamento da pobreza, da falta de acesso à educação, da discriminação racial ou de gênero. Os direitos humanos constantes da Convenção serão incorporados ao ordenamento pátrio, com status de direitos fundamentais, tão logo se dê a declaração congressual, por meio do quorum qualificado, na forma do § 3º, do art. 5º, da CF supra transcrito. Reconhecer-se-á, objetivamente, que as pessoas com deficiência no Brasil necessitam desse instrumento para que o artigo 5º lhes alcance de forma eficaz.
4. CONCLUSÕES
4.1. É fácil notar que o conjunto dos dispositivos acima comentados traduz toda a gama dos direitos humanos nas esferas individuais e sociais, nas liberdades e direitos do indivíduo e nas obrigações do Estado para a consecução dos direitos humanos sociais.
4.2. A reafirmação dessa amalgama jurídica também se fez necessária novamente nesse Tratado Internacional para que, por meio de conceitos e princípios específicos, os direitos humanos universais se tornem eficazes para o seguimento dos cerca de seiscentos milhões de pessoas com deficiência no mundo.
4.3. A motivação político-jurídica da Convenção, conforme o preâmbulo centraliza-se no princípio da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos que foram proclamados ao longo da História.
4.4. O conceito de pessoa com deficiência adotado pela Convenção supera as legislações tradicionais que normalmente enfocavam o aspecto clínico da deficiência. As limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais passam a ser consideradas atributos das pessoas, atributos esses que podem ou não gerar restrições para o exercício dos direitos, dependendo das barreiras sociais ou culturais que se imponham aos cidadãos com tais limitações, o que possibilita afirmar-se que a deficiência é a combinação de limitações pessoais com impedimentos culturais, econômicos e sociais. Desloca-se a questão do âmbito do individuo com deficiência para as sociedades que passam a assumir a deficiência como problema de todos.
4.5. A Convenção em questão rompe os muros dos guetos institucionais na educação, no trabalho, no esporte, no lazer, na cultura, na saúde e nas políticas de assistência social, para se vislumbrar a pessoa com deficiência com toda a completude que merece, a fim de ser vista e respeitada como cidadã autônoma e senhora do seu destino.
4.6. É imperiosa a ratificação da Convenção pelo Brasil com fulcro na Emenda 45/04 – parágrafo 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal – porque, embora abrangente, a legislação brasileira carece de eficácia, seja em razão da ausência de sanções legais e concentração de direitos em Decretos Regulamentares , seja em decorrência do grande número de leis sem uma unidade sistemática e axiológica. Acrescente-se o aspecto da transversalidade das pessoas com deficiência em se considerando as questões sociais, de gênero, de raça ou qualquer outro fator de discrímen que se agrava visivelmente quando se trata de pessoa com deficiência.
(*) Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, Procurador Regional do Ministério Público do Trabalho – 9ª Região, Especialista e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo e Doutor pela Universidade Federal do Paraná.
[1] Süssekind Arnaldo, Direito Constitucional do Trabalho, Livraria e Editora Renovar LTDA, Rio de Janeiro, 1999, pág. 69
[2] 105049012 JCF.5 JCF.5.2 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – PRISÃO CIVIL – Esta Corte, por seu Plenário (HC 72131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. – Esse entendimento voltou a ser reafirmado recentemente, em 27.05.98, também por decisão do Plenário, quando do julgamento do RE 206.482. Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. – Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica no sentido de derrogar o Decreto-Lei 911/69 no tocante à admissibilidade da prisão civil por infidelidade do depositário em alienação fiduciária em garantia. – É de observar-se, por fim, que o § 2º do artigo 5º da Constituição não se aplica aos tratados internacionais sobre direitos e garantias fundamentais que ingressaram em nosso ordenamento jurídico após a promulgação da Constituição de 1988, e isso porque ainda não se admite tratado internacional com força de Emenda Constitucional. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF – RE 253071 – GO – 1ª T. – Rel. Min. Moreira Alves – DJU 29.06.2001 – p. 61)
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